"As chamadas “benzedeiras” (necessário lembrar que os “benzedores” também existem, embora em menor quantidade), são praticantes de um antigo ofício que, com as devidas vestimentas culturais adequadas a cada cenário, estiveram presentes desde uma imprecisa e distante data, nas mais antigas civilizações. Exercem aquilo que hoje, um tanto pejorativamente, chamamos de “simpatia”, e que seria mais preciso chamar de “magia simpática”."
Do ponto de vista etimológico, ou seja, da origem da palavra, simpatia vem do grego sympatheia: syn: reunião, convergência + pathos: experiência, afecção, dor, sofrimento, isto é, sentir ou sofrer juntos, que guarda semelhanças coma a origem da palavra “compaixão”. Do ponto de vista da medicina psicossomática, já se pôde confirmar aquela visão do filósofo Epicuro, de que haveria uma “simpatia”, uma dor compartilhada entre corpo e mente. Também a Homeopatia, ramo da medicina alternativa já tão conceituada e bem aceita em nossos dias, baseia-se, entre seus princípios, naquele que provém do seu próprio nome: “semelhante cura semelhante”, ou seja, uma influência mútua entre elementos similares ou iguais, quais sejam o elemento causador do mal e o remédio, mudando apenas sua dosagem.
A isso, devemos agregar o fato de que a relação das mulheres com algum tipo de poder mágico também é fato de longa data, por uma similaridade “simpática”: a natureza também é mãe, e sua compreensão, por parte da mulher, seria uma espécie de “diálogo entre mães”.
Assim, desde a sacerdotisa até a “bruxa”, como alguns ainda insistem em denominar nossas benzedeiras, em suas comunidades, a mulher, com sua chamada percepção intuitiva, destacada através da história, e sua estreita relação com a vida, como portal da mesma, sempre teve sua imagem atrelada a algo de místico, impressão que se acentua com o avançar da idade.
Na Grécia, seu panteão se dividia entre as chamadas “Deusas Virgens” e as “Deusas-Mãe”, com papéis relacionados ao campo em que lhes cabia “dar à luz”.
Assim segue em Roma, com as virgens vestais, guardiãs do Fogo, ou seja, da luz e memória da civilização, e as matronas, equivalentes às Deusas Mater, guardiãs dos elementos concretos da vida, como a terra e a água. Também os deuses hindus nada podiam se não estavam atrelados à sua contraparte feminina ou Shakti, que abria caminho para que seus poderes pudessem se manifestar no mundo concreto.
O que é interessante notar é que nossas benzedeiras, que, através de um pouco de água, um ramo verde, um terço e orações, operam curas em crianças e adultos, também realizam uma modalidade de simpatia, pois a vida, representada pela água, símbolo da energia, e pelo verdor do ramo, é transferida ao doente, enquanto suas mazelas passam ao ramo, secando-o.
É uma transferências dos poderes da vida de um ponto ao outro, tudo isto cercado por orações (nem sempre católicas, embora o sejam, na maioria dos casos), em que Deus é invocado a participar, com suas bençãos e dons, e a benzedeira funciona como uma Shakti que serve de ponte ao Divino para sua manifestação no mundo.
Outro ponto curioso e nada desprezível para se ter em consideração é a necessidade destas senhoras, para obterem crédito junto à comunidade em que vivem, é conquistada por uma vida correta, sem vícios nem grandes contratempos de ordem moral. Esta “pureza” também era exigida das matronas e vestais, para que a vida física e metafísica pudesse transitar por elas, como um canal.
Acredito oportuno lembrar da máxima de cunho taoísta, embora não ausente em outras tradições, orientais sobretudo, de forma similar, do ser humano como um cano de bambu, que deve ser desobstruído, ou seja, puro, para que a luz do espírito chegue ao mundo sem se converter em sombra.
Proclo, filósofo neoplatônico grego do século V, enunciava o seguinte: “O fato de que as esferas cósmicas cheguem até nós e aos demais seres mortais, há que se recordar que se deve à simpatia do Universo. E poderemos demonstrar, por sua vez, que essa se deve ao fato de que o Todo é um ser animado. Pois, se é uma só alma que sustenta a coerência do Universo inteiro, é de toda maneira necessário que haja uma simpatia mútua entre suas partes.”
Assim, nossas tradicionais benfeitoras, ao benzer um enfermo (do latim benedicere, “falar bem de uma pessoa, abençoar”), trabalham mesmo para o bem e, sem nada conhecerem de neoplatônicos ou assemelhados, por pura intuição ou por “dom”, como as mesmas dizem, reiteram esta simpatia entre céu e terra, sacralizando a cura e direcionando os dons da vida para aqueles que deles necessitam.
Como já dizia o mitólogo e filosofo Mircea Eliade, o sagrado é a função de dar sentido; sacralizar o ato da cura, então, segundo os antigos preceitos da simpatia, pode reordenar céu e terra, mente e corpo, o que pode sim abrir caminho, senão como condição suficiente, mas como condição necessária, para a remissão da doença no corpo que dela padece.
Brindemos ao fato de que este tradicional ofício esteja mais próximo, agora, do reconhecimento de seu justo valor!
Texto publicado por Rose Kareemi Ponce, facilitadora dos Saberes Femininos Aplicados, em seu Instagram. Ele foi exposto no Projeto “Benzedeiras, tradição milenar de cura pela fé.”O Projeto foi desenvolvido em Socorro por Marinilda e Bruno Boulay do ITC, Instituto Totem Cultural, com a participação do fotógrafo Cuca Jorge. Imagens cedidas por Rose Kareemi Ponce.
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